Fim de Vida e Não-Abandono: Um Tríptico a Partir de Timothy E. Quill

February 1, 2018 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Fim de Vida e Não-Abandono: Um Tríptico a Partir de Timothy E. Quill

Laura Ferreira dos Santos

Penso que este [T. Quill] é o tipo de médico que gostarei de ter junto de mim quando estiver a morrer: sério, cuidadoso e solícito — capaz de saber ajuizar bem de que tipo de ‘ajuda’ eu possa estar a precisar e pretender quando pedir ajuda médica no morrer. Putnam 2002: 138.

A RAZÃO DE SER DE UM TRÍPTICO EM TORNO DO NÃO-ABANDONO Alphonso Lingis, a propósito daqueles que constituem a comunidade dos que não têm nada em comum a não ser a morte, afirma que ‘uma sociedade que abandone os moribundos de modo a morrerem sozinhos, quer em hospitais quer em valetas, debilita-se radicalmente’ (Lingis 1994: x). Nesta perspectiva de não-abandono, alguém disse já que as pessoas que estão para morrer são os nossos ‘boat people’, aqueles que querem ser acolhidos dentro das nossas fronteiras, mas são constantemente repelidos para os seus países de origem, de vulnerabilidade extrema. Contra esta situação tem-se debatido Timothy E. Quill, res-

Interacções número 9. pp. 11-38. © do Autor 2005

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peitado médico norte-americano, Professor de Medicina, Psiquiatria e Medical Humanities na Universidade de Rochester, School of Medicine and Dentistry (estado de Nova Iorque), tendo, durante oito anos, dirigido uma unidade de cuidados paliativos (para outras informações sobre o autor, cf., por ex., http://www.ahsl.arizona.edu/medhum/ quill/). Nos Estados Unidos, o seu nome tornou-se conhecido, fundamentalmente, por duas razões. Por um lado, por ter publicado, em 1991, no New England Journal of Medicine, um artigo em que assumia a sua cumplicidade no suicídio de uma doente sua de longa data, num caso de leucemia muito grave. Por outro, por ter sido um dos médicos que, entre 1994 e 1997, esteve envolvido numa acção que chegou ao Supremo Tribunal dos EUA e que visava alterar a lei do estado de Nova Iorque sobre a proibição do suicídio medicamente assistido (em inglês, ‘physician-assisted suicide’, sendo, muitas vezes, usada a abreviatura PAS). Quill tem dedicado uma grande atenção às questões de fim de vida, preocupando-se com o cuidado e os direitos das pessoas que estão para morrer. Grande adepto dos cuidados paliativos, pensa que nem sempre estes conseguirão fornecer a resposta adequada, pretendendo a legalização do que, à falta de uma expressão mais adequada, se chama, habitualmente, suicídio medicamente assistido, como instância de último recurso para os casos de processos de morte que implicam um sofrimento impossível de controlar, quer seja ou não acompanhado de dor física. Fundamentalmente, Quill pretende que entre quem cuida e quem é cuidado se possa estabelecer uma relação estreita pautada pelo compromisso de não-abandono por parte de quem cuida. A partir da leitura de três dos seus livros (e de um outro livro que editou, em 2004, conjuntamente com Margaret Battin), o texto que aqui apresento pretende elaborar um tríptico em torno das questões ligadas ao morrer, à morte e ao não-abandono de quem se encontra gravemente doente ou na fase final da sua vida. Embora se trate de um tríptico escrito, o que lhe serve de inspiração e modelo são, na verdade, os trípticos medievais e renascentistas da pintura ocidental e, dentro deles, os que também têm os painéis laterais posteriores pintados. De facto, antes de escrever este texto desenhei vagamente em duas folhas A4 o tríptico de que queria falar, como se alguém pudesse depois vir a tomá-lo em conta e concretizá-lo plasticamente. Nunca antes como neste texto senti a necessidade de utilizar

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este recurso prévio, nem nunca pensara poder vir a utilizá-lo. Penso que, fundamentalmente, dois motivos me conduziram nesta direcção. Em primeiro lugar, o facto de já ter investigado muita literatura sobre eutanásia e suicídio assistido (Santos 2003a, 2003b, 2004 e 2005) que, frequentemente, se faz acompanhar de vários casos concretos em que, consoante as/os autores, se vê ou não a pertinência de recorrer a essas hipóteses. Muitas dessas histórias permaneceram no meu cérebro, como se se tratasse de pequenos excertos de filme, com os dramas vividos pelas suas personagens principais. O próprio Timothy Quill é considerado um óptimo ‘story-teller’, estando um dos seus livros — A Midwife Through the Dying Process (1996) — fundamentalmente dedicado à descrição do que vai acontecendo a nove ‘almas’ em processo de morte. Nove histórias dramáticas, nove documentários que se poderiam realizar em torno de cada uma delas. Por outro lado, o cinema do início deste século XXI — e quem diz cinema diz também imagens — tem-nos ajudado a pensar nestas questões, com Les Invasions Barbares, do canadiano Denys Arcard (em 2004, melhor filme estrangeiro da Academia dos Óscares de Hollywood), Mar Adentro, do espanhol Alejandro Amenábar (em 2005, melhor filme estrangeiro da Academia dos Óscares de Hollywood), Million Dollar Baby, do norte-americano Clint Eastwood (em 2005, melhor filme da Academia dos Óscares de Hollywood) e, antes deles, em 2001, C’est la Vie, do francês Jean-Pierre Améris, baseado num livro de Marie de Hennezel, La Morte Intime (1995). De um modo mais decisivo ainda do que nos livros, são filmes que nos impregnam de histórias e de imagens. Por isso, para mim, debater a temática das diversas formas de ‘morte-assistida’2 está associada a pessoas, a casos difíceis com que se debatem, a alguns dos seus nomes, mesmo que fictícios. Como que reforçando, implicitamente, esta minha abordagem, Michael J. Hyde (2001: 231), a propósito de Timothy Quill, afirma o seguinte: depois de ler as suas narrativas sobre a humanidade ferida, fica-se com a sensação de que se o debate sobre a eutanásia for alguma vez decidido, o resultado será determinado, pelo menos numa grande parte, por aqueles que contam as ‘melhores’ histórias sobre os actos heróicos de pessoas que, como eles próprios [o autor refere-se também a Joni Eareckson Tada], têm frequentemente de olhar a morte de frente.

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Talvez, de facto, o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido seja, na verdade, ‘ganho’ por quem souber contar as melhores histórias em torno deles, não no sentido de histórias melhor compostas literariamente, mas histórias mais ‘verdadeiras’, no sentido de nos revelarem toda a problemática nelas envolvida. Segundo o próprio Timothy Quill, ‘Se vai haver mudança, ela será accionada pelas histórias e paixões destas testemunhas’ (Quill 1993: 22), ou seja, destas pessoas que testemunharam ‘indignidade’ e abandono no fim de vida, quer se tratasse de familiares ou amigos/as. De uma forma semelhante, afirma noutro livro: ‘Através de narrativas, aprendemos, frequentemente, mais sobre a natureza multidimensional da vida humana — as intenções, emoções e significados aparecem matizados, contraditórios, e muito mais complexos do que é capaz de reconhecer a ética habitual, baseada em regras’ (Quill 2001: 70). Daí o interesse destas narrativas para mim. No meu caso concreto e nesta temática concreta, não consigo apenas pensar princípios abstractos sem os ligar à experiência concreta de algumas pessoas, pois são elas que, em última análise, julgam os princípios, não o contrário; melhor, os princípios só terão validade se ajudarem a respeitar a vulnerabilidade de cada uma delas, possibilitando-lhes uma morte mais de acordo com a sua situação particular de doença e os seus valores mais arraigados e reflectidos. Esta é, portanto, uma das razões pelas quais pensar esta temática está para mim tão ligada a imagens. No entanto, esta não é de per si uma razão para ligar estas imagens a um tríptico. Por que recorrer então a ele? Alguns motivos poderão explicar esse recurso: 1. Os trípticos medievais e renascentistas estão, acima de tudo, ligados a cenas de ordem religiosa, tendo, algumas vezes, por objecto a crucificação de Cristo, ou seja, a narrativa pictórica de um processo de morte, e morte dolorosa, ao ponto de se colocar na boca de Cristo o início do Salmo 22 que começa precisamente por apontar para uma situação de suposto abandono: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’. 2. Ao falar-se de pessoas em fim de vida já muito próximas da morte, é natural que, quer tenhamos ou não uma orientação religiosa, pensemos em elementos desta ordem; 3. A Igreja Católica é talvez a instituição que, mais veementemente, se opõe à eutanásia e suicídio assistido. Mesmo não se podendo identificar inteiramente a cena da crucificação com a Igreja Católica, é inevitável que ela lhe apareça ligada.

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Deste modo, a imagem do tríptico foi-se-me impondo como aquela que, neste momento, atendendo às minhas crenças religiosas cristãs e ao conhecimento de alguns aspectos da arte sacra ocidental, melhor me ajudaria a reflectir sobre as últimas linhas do último capítulo das nossas existências.

PAINEL CENTRAL: ‘DIANE’ Diane tivera uma vida difícil: provinha de uma família alcoólica, sentira-se, muitas vezes, sozinha, enquanto jovem passara por um cancro vaginal, enquanto adulta combatera o seu próprio alcoolismo e depressão. Mas, há três anos e meio que a sua vida corria bem, como nunca antes correra: as relações com o marido, o jovem filho e as pessoas amigas tinham-se aprofundado, não havia problemas profissionais e a sua actividade artística melhorara. Há oito anos que tinha Timothy Quill por médico habitual e as últimas análises ao sangue que fizera revelavam dados anormais. O que poderia ser, perguntava? Quill não queria acreditar no prognóstico mais grave, mas Diane era demasiado frontal, independente e auto-determinada (Quill 1993: 62; 2001: 52): o que poderia ser?, repetia. O que se veio a verificar ser de facto: uma forma aguda de leucemia. Possibilidades de sobrevivência? Segundo as estatísticas, 25%, ao fim de três séries penosas e eliminatórias de tratamento, duas de quimio e uma de transplante de medula, caso se encontrasse um/a dador/a compatível. Como, ao longo das três fases, 75% das pessoas ia morrendo, de facto a hipótese de sobrevivência final era apenas de 25%. Anteriormente, no mesmo hospital em que se encontrava Diane, quatro doentes com o mesmo tipo de doença tentaram a sua sorte. Mas não só nenhum/a escapou, como tinham também acabado por morrer de mortes dolorosas (Quill, 1993: 61; 2001: 52). No entanto, Quill não revela este dado. Afinal, não valeria a pena tentar, quando do outro lado dos 25% se encontrava apenas a morte? Depois de não haver qualquer dúvida sobre a doença de que padecia Diane, o oncologista de serviço fez os preparativos para iniciar a químio nessa mesma tarde. Mas Diane recusa, não queria qualquer tratamento. Queria ir para casa e estar com a família. Quill sabia dos perigos em adiar a químio, por isso combinou um encontro com ela dentro de dois dias. Dois dias depois, acompanhada do marido e filho, Diane reforça a sua decisão, que a família não conseguira abalar: recusava o tratamento. Convencida de que iria morrer durante o tratamento, no meio

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de um grande sofrimento, preferia escapar, desde já, à tortura e ser ajudada a morrer de um modo que lhe garantisse o máximo de ‘conforto’ possível até à fase final. Quill fica perturbado, tanto mais quanto sabia que ela era uma mulher lutadora. Fá-la consultar outros médicos, inclusive um psicólogo que já a acompanhara antes, para o caso de alguma depressão estar a interferir no seu juízo, mas a decisão de Diane é inabalável. Finalmente, Quill percebe o seu ponto de vista: a vida era dela, era ela que iria sofrer, como Diane não cessava de repetir (Quill 2001: 43 e 50), não uma outra pessoa em seu nome, eram as convicções dela que estavam em causa e que deviam ser respeitadas. Aliás, quanto mais Diane ficara informada do que acontecia nos 75% de casos de morte, mais arraigada ficara também na sua posição. Já se sentira demasiado invadida física e psicologicamente, por causa do cancro vaginal, não queria mais invasões profundas do seu corpo e do seu espírito, como iria acontecer se se submetesse ao tratamento. Como antigo director de um programa de hospice, Quill encaminha-a para um serviço desse género, ao domicílio. Mas Diane ficara impressionada com a morte dolorosa de certas pessoas amigas em hospice (cf. ibid.: 53), não queria que isso lhe acontecesse. Do modo frontal que lhe era habitual, acabou por dizer, claramente, a Quill que aproveitaria toda a ajuda possível, mas que, quando as suas condições físicas e intelectuais se tivessem deteriorado a tal ponto que já não conseguisse encontrar sentido para a vida, gostaria de morrer e não ficar à espera da morte. O seu sentido de independência e dignidade exigiam-lhe essa decisão. Como médico e como pessoa, Quill admite em Death and Dignity que este foi um momento decisivo para si (Quill 1993: 19). Antes de Diane, ajudara, indirectamente, algumas pessoas a morrer através de meios legais, admite mesmo que, em certas circunstâncias, terá estado nas ou para além das fronteiras legais admitidas em medicina, embora nunca tivesse colocado a hipótese de colaborar num suicídio assistido. Mas conhecia bem Diane, sabia que seria capaz de uma morte violenta se não encontrasse alternativa, tinha já conhecimento, pela sua experiência pessoal como médico, que ‘infelizmente não é raro haver sofrimento intratável antes da morte’ (ibid.: 21). Por outro lado, Diane, bem informada como estava, sabia também que muitos/as doentes com leucemia morriam ‘de hemorragia incontrolável ou de uma infecção devastadora’ (Quill 2001: 53). No seu caso, a hipótese de uma sedação terminal não a tranquilizava, segundo Quill (ibid.: 54):

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a lucidez mental era um elemento fundamental do seu ser, e morrer sedada num coma iatrogénico parecia-lhe pior do que a morte. Também temia que as últimas imagens que a sua família reteria de si em tais condições pudessem debilitar a experiência tão boa que estavam agora a partilhar.

Ou noutras palavras: ‘Para Diane não fazia qualquer sentido morrer sedada numa infusão de barbitúricos, à espera que a desidratação ou a sepsia vencessem o seu corpo. Teria considerado esse procedimento humilhante, destruindo tudo o que estava a tentar alcançar’ (ibid: 56). Nestas circunstâncias, Quill aconselha-a a obter informações junto da Hemlock Society, que, na altura, era a instituição a ter dados mais fiáveis sobre dosagens adequadas. Por outro lado, se, de facto, Diane estava realmente interessada no que dizia, era uma maneira de a responsabilizar e integrar mais no processo por que pretendia enveredar (ibid.: 54). Um dia, recebe dela um telefonema em que lhe pede uma prescrição de barbitúricos para dormir. Como alguns outros médicos, Quill poderia ter passado a prescrição sem fazer perguntas, embora desconfiando do que se tratava, pois o medicamento estava tipicamente associado aos métodos preconizados pela Hemlock Society. Mas quis falar directamente com Diane, saber o que estava realmente na sua cabeça, evitando uma morte precipitada ou um mau uso dos medicamentos, que a poderia colocar numa situação ainda pior. Nitidamente, Diane não queria envolver Quill de um modo directo, por medo de repercussões legais sobre ele. Mas Quill acabou por considerar a vontade de Diane ‘conforme com os valores mais importantes que estão na base do cuidado a prestar aos que morrem — valores de escolha pessoal informada, de minimização do sofrimento e de não-abandono’ (Quill 1993: 20). Por outro lado, considerou que o pedido tãopouco ia contra os seus próprios valores. Aliás, em Death and Dignity – embora se deva tomar em consideração que o livro é já posterior ao caso com Diane, o que quer dizer que, eventualmente, Quill não teria explicitado para si próprio os pensamentos que se seguem antes desta sua experiência concreta – admite que, se um dia ele próprio se vir numa situação de grande sofrimento que só terminará com a morte, considerará seriamente a hipótese de pôr cobro à vida, algo que lhe será relativamente fácil, confessa, pela profissão que exerce (ibid.: 172). Ao finalizar o livro, expressa, de uma forma mais literária, a mesma convicção, o que, obviamente, nada o impede de salientar, em primeiro lugar, o seu amor à vida (ibid.: 216).

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No encontro com Diane, Quill apercebe-se que ela tem, de facto, problemas com o dormir, mas que, fundamentalmente, quer ter na sua posse um meio seguro de poder terminar com a vida, se o sofrimento se lhe tornar intolerável. Só com essa possibilidade de fuga é que conseguirá sentir-se livre para investir, intelectual e emocionalmente, nas pessoas e situações que a rodeiam. Quill aceita o desafio, mas já antes consultara, de um modo extremamente confidencial, alguns colegas em quem depositava mais confiança, para que o seu próprio juízo pudesse ser posto em confronto com o de outros. Assim, ao aceitar o desafio, Quill está convicto de que, em relação a Diane, ‘Estava a libertá-la para poder aproveitar ao máximo o tempo de que ainda dispunha e para preservar, até à sua morte, o que para ela significava dignidade e controlo’ (ibid.: 14). Encontrar-se-iam regularmente e, antes de pôr fim à sua existência, Diane prometia ter um último encontro com Quill, para se ter a certeza de que não havia mais nenhum meio a explorar, promessa que Diane cumpriu. E o facto é que os três meses de vida de que ainda gozou, embora não destituídos de tempos de tristeza e revolta, foram muito significativos para ela e para quem a rodeava, tendo o marido passado a trabalhar a partir de casa e o filho permanecido também junto dela. Fisicamente, não terá mesmo passado muito mal, com algumas transfusões para quebrar os sintomas de fraqueza e alguns medicamentos pontuais. Embora correndo o risco de apanhar uma infecção, não hesitou em participar numa conferência sobre o direito de as/os doentes recusarem tratamentos. Mas três meses e duas semanas depois do diagnóstico inicial, tudo piorou irreversivelmente. Diane não queria morrer, mas, mesmo assim, sentia e via que morrer era para ela melhor do que sofrer daquele modo intolerável a seus olhos. Despediu-se de Timothy Quill, prometendo um dia encontrá-lo junto do Lago Geneva, num pôr-do-sol com dragões a nadar ao longe. Dois dias depois, pediu ao marido e ao filho que saíssem de casa de manhã durante uma hora. Quando voltaram, Diane estava morta, aparentemente de uma morte pacífica. O marido avisa Quill, que se desloca a casa e avisa, por sua vez, o ‘medical examiner’ de que morrera uma doente do hospice. Motivo? Leucemia aguda, respondeu. Como diz, a lei, a sociedade e a profissão médica poderiam não entender a verdade. Portanto, disse (ibid.: 16):

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leucemia aguda’ para nos proteger a nós todos, para proteger Diane de uma devassa do seu passado e do seu corpo e para continuar a proteger a sociedade do conhecimento do grau de sofrimento por que as pessoas passam frequentemente no processo de morrer.

Embora muitas das citações que tenho feito pertençam ao livro Death and Dignity, deve-se ter em conta que o seu ‘Preface’, entre as páginas 9 e 16, corresponde ao artigo que Timothy Quill escreveu no prestigiado New England Journal of Medicine, em Março de 1991, intitulado Death and Dignity. A Case of Individualized Decision Making (artigo de novo inserido no seu livro de 2001, Caring for Patients, cap. 3). Mesmo depois de a ‘executive director’ da revista, Marcia Angell, o ter aconselhado a pensar melhor, por causa de eventuais problemas com a justiça, Quill decidiu publicar o texto. Era preciso romper o silêncio em torno destes casos e Quill sabia que o seu artigo, proveniente de um ‘médico pertencente à área mais académica e reputada da medicina’ (Quill 1993: 21), não seria tão facilmente rebatível como o artigo anónimo publicado anteriormente no Journal of the American Medical Association , intitulado ‘It’s over, Debbie’ (1988), em que, supostamente, um médico no meio de uma ronda nocturna de hospital, ouvindo o desejo de morrer de uma doente com cancro, lhe dá uma injecção letal. O médico estaria a aliviar o sofrimento da paciente ou o seu próprio? E onde estava o cumprimento de salvaguardas mínimas, sem haver sequer um conhecimento prévio da pessoa? O seu texto tão-pouco seria tão rebatível, considerava Quill, como as actuações de Jack Kevorkian, das quais Quill se distancia imenso, pela falta de salvaguardas nos seus procedimentos: ‘Parece mais interessado em desafiar a sociedade e a profissão médica do que em comprometer-se com a luta travada pelos doentes que estão a morrer no sentido de encontrarem o seu próprio caminho’ (ibid.: 125). Infelizmente, a identidade de Diane foi descoberta, o seu corpo autopsiado sem autorização da família e Quill levado perante a justiça, numa amplitude de acusações que iam desde a alteração de registos públicos até homicídio, havendo jornais que antecipavam uma condenação de quinze anos de cadeia (ibid.: 21). Quill sentiu-se apoiado pela família e amigos/as, a comunidade profissional mais próxima e mesmo algumas associações médicas. Levado perante um grand jury, foi ilibado. Curiosamente, ilibação para a qual muito contribuiu o facto de não ter estado presente aquando da morte de Diane (ibid: 22), precisamente aquela omissão que mais lamenta em todo o seu

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relacionamento com ela — ‘a única [a minha maior] mágoa’ (ibid.: 22 e 215). Em palavras similares, ‘O aspecto mais trágico da história de Diane é que ela morreu sozinha. No entanto, como médicos, fazemos um compromisso com os nossos doentes que vão morrer no sentido de não os abandonar por mais difícil ou devastadora que a sua situação possa tornar-se’ (ibid.: 175). Diane, com a sua solidão na morte, pagou o preço de ter querido assumir nas mãos o seu destino sem ter de pôr ninguém em perigo ao nível da lei; ela e muitos/s outros/as que assumiram e assumem deliberadamente morrer sozinhos/as. São justas as leis que levam pessoas moribundas – talvez Diane vivesse mais uns dias, talvez mais uma ou duas semanas, diz Quill, (2001: 161 – a morrerem na solidão e abandono? Tem de haver outra via, pensa Quill. Ainda por cima, comparada com as quatro mortes dolorosas ocorridas anteriormente no decurso do tratamento contra a leucemia naquele hospital, a de Diane fora a única a ser notoriamente antecedida por tempos ricos de significado para ela e para quem com ela convivia de mais perto. Claro que nada se sabia do que acontecera durante aquela hora em que permanecera sozinha para morrer, mas o aspecto do seu corpo não dava a impressão de ter havido luta, ou seja, de ter sido uma morte difícil. Nem sempre é este o caso, pois a medicação utilizada pode não resultar — daí que outro dos conhecidos métodos preconizados pela Hemlock Society seja o saco plástico na cabeça como medida de última instância, para provocar sufocação — mas neste pormenor Diane parece ter tido alguma sorte. Ainda a propósito das mortes anteriores no decurso do tratamento, é de referir que, de um modo perfeitamente irracional e mágico, havia quem pensasse no hospital que, depois das mortes ocorridas, as probabilidades de Diane sobreviver eram maiores (ibid.: 52). Porque Quill está convencido de que as legítimas convicções das pessoas que estão para morrer devem ser respeitadas, pretende que lhes seja apresentado o mais amplo leque de escolhas possíveis quanto à forma de morrerem, acompanhado das salvaguardas consideradas necessárias para impedir abusos. Nesse sentido, o capítulo 8 de Death and Dignity apresenta alguns ‘critérios clínicos possíveis’ para a justificação do suicídio assistido. No entanto, todas as formas medicalizadas de morrer (não iniciar ou parar o tratamento, sedação terminal, deixar de comer e beber, mas com a ajuda de suporte médico, etc, etc), hoje tão frequentes nos países mais desenvolvidos, deverão ser também alvo de salvaguardas, pois parar um tratamento — desligar um ventilador, por ex. — pode efectivamente dar uma morte

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imediata, enquanto que a/o doente com uma prescrição adequada para possibilitar o suicídio pode acabar por nunca se suicidar de facto. Partidário deste amplo leque de escolhas individualizadas para os que vão morrer, Quill defende a existência de cuidados paliativos para todos e a possibilidade de suicídio medicamente assistido como alternativa de última instância para certos casos que, em princípio, seriam raros, pois os bons cuidados paliativos deveriam ser capazes de proporcionar uma boa morte à maior parte das pessoas (cf., em particular, a ‘Introduction’ que ele e Margaret Battin escrevem em Quill e Battin 2004). No entanto, Quill alerta para que, idealmente, os cuidados paliativos não deveriam ficar restringidos apenas, como é habitual, a quem é prevista uma morte dentro dos próximos seis meses (englobando também o acompanhamento dos familiares cuidadores), pois há quem necessite deles mesmo não estando numa fase terminal, por doença crónica ou outra. Neste contexto, se Quill argumenta que o suicídio medicamente assistido deveria ser um recurso de última instância — ‘seguro, legal e raro’ (‘safe, legal and rare’), como o caracterizou Margaret Battin, embora Battin coloque a hipótese de que, no futuro, de uma forma que não vou aqui explicitar, essa poderia ser a forma preferida de morrer (Battin, 2001) — creio que isso se deve aos possíveis abusos que poderia originar, pois ‘a nossa sociedade poderia estar demasiado desejosa de escolher uma solução rápida, barata e técnica para um processo de morrer que muitas vezes é desagradável’ (Quill 1996: 215. Ver outros perigos expressos nesta mesma página). Assim se entende que considere que ‘Diane foi a excepção, não a regra’ (Quill 2001: 161). Mas é para estas excepções que a medicina tem também de estar preparada, não abandonando quem se encontra numa situação clínica difícil, terminal ou não. Se Quill insiste neste compromisso e obrigação de não-abandono por parte do pessoal médico é porque, a seu ver, ‘Evoca associações menos abstractas, mas não menos teoricamente fundadas, às experiências genuínas de doentes e famílias, do que os princípios de autonomia, nãomaleficência e justiça’ (ibid.: 72), princípios clássicos que, supostamente, deveriam reger a actuação médica (Beauchamp e Childress 1979). Para Quill, a questão é muito clara: assim como não se abandona uma pessoa no meio de uma cirurgia, por mais problemas que esta apresente, tão-pouco se pode abandonar alguém que está para morrer, por mais complicada que seja a situação (Quill 1993: 208). E, assim como há situações de emergência médica para manter alguém em vida, tem de haver, correlativamente, situações de emergência

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médica para quem se encontra num processo difícil de morte. Aliás, por diversas vezes, Quill afirma que um processo doloroso de morte deve ser equiparado a uma emergência médica (por exemplo, Quill 1996: 151-152; 218). De um modo ainda mais veemente: ‘Para o médico, fazer face a esta incerteza [do processo de morrer] pode exigir tanta coragem, criatividade e energia como tratar o doente mais debilitado da unidade médica de cuidados intensivos’ (Quill 1993: 84). Termino este painel central com uma pergunta do próprio Quill: ‘Se vamos tornar a morte mais confortável, porque não fazê-lo de um modo claro, coerente com os valores das pessoas envolvidas?’ (Quill 1996: 151).

PAINEL DA ESQUERDA: ‘HÁ MAIS LUZ QUANDO ALGUÉM FALA’ Nas Lições Introdutórias à Psicanálise (1916-1917), Freud dedica um capítulo, o 25, a falar da angústia (‘Die Angst’). É certo que Freud, quase dez anos depois, em 1926, publica um livro, e não apenas uma ‘conferência’, com reflexões mais aprofundadas em torno do tema: Inibição, Sintoma e Angústia (Hemmung, Symptom und Angst). É certo também que, em 1933, nas Novas lições, há um outro capítulo sobre a angústia, o capítulo 32, ‘Angústia e Vida Pulsional’ (‘Angst und Triebleben’). No entanto, na medida em que a minha intenção neste painel não é a de aprofundar o pensamento de Freud, mas simplesmente a de construir um tríptico em torno do não-abandono no fim de vida, é na conferência inicial que me vou deter, pois é esse texto que melhor serve os meus propósitos. Por isso mesmo, a minha atenção vai fundamentalmente recair sobre o que Freud afirma sobre a angústia real e não sobre a angústia neurótica, enquanto que num estudo que visasse aprofundar o tema na sua perspectiva este direccionamento teria de estar invertido, discutindo o papel do nascimento, do medo da castração e, de um modo geral, do recalcamento da líbido, na geração da angústia. Acerca desta conferência de Freud, interessa-me, antes de mais, ressaltar três pontos. Em primeiro lugar, como já referi, de passagem, há uma diferença a estabelecer entre angústia real (Realangst) e angústia neurótica, não se devendo confundir uma com a outra. Quer isto dizer, como o próprio Freud escreve, que a angústia real tem para nós contornos racionais e inteligíveis, por ser uma reacção esperada e ‘normal’ ante um

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perigo exterior, enquanto a angústia neurótica apresenta facetas por vezes enigmáticas, podendo ser tão ‘flutuante’ que se agarra intensamente a qualquer situação que, de momento, possa dar-lhe um conteúdo. Ora, é precisamente essa intensidade desproporcionada de angústia que lhe vale o qualificativo de ‘neurótica’. Pelo contrário, e seguindo a argumentação de Freud, poderíamos dizer que a angústia que se apodera de nós quando nos vemos desprotegidos diante de um animal perigoso é uma angústia bem real, não se tendo de invocar qualquer carácter neurótico para a explicar. Em segundo lugar, esta angústia real está fortemente relacionada com um reflexo de fuga, defesa ou ataque perante algo bem concreto e indubitavelmente perigoso, associando-se assim à pulsão de conservação. Em terceiro lugar — mas sem que estas enumerações signifiquem compartimentos estanques — convém salientar o que, aliás, faz parte do conhecimento comum: muitas vezes, a angústia real é tanto maior quanto maior é também a nossa capacidade de previsão sobre o desenrolar dos acontecimentos. Como escreve Freud, um bom conhecedor da floresta ficará apreensivo perante a pegada de um animal perigoso que descobriu no solo, enquanto outra pessoa, sem esses conhecimentos, não verá o seu medo aumentar, pois nem sequer estará atenta a esse pormenor. Segundo outro exemplo de Freud, um marinheiro experimentado poderá ficar extremamente receoso em relação a uma pequena nuvem ou sinal que tiver descoberto nos céus, sem que mais ninguém dê atenção ao que ele vê. Para Freud, o que interessará nesta questão da angústia real será tentar diminuí-la ao máximo, através da sua transformação em acção. O progresso da angústia, de si, ao contrário do que pode ocorrer na preparação ansiosa, tende a paralisar a acção. Sabermos que podermos actuar no sentido de contrariar o perigo que nos assalta ou rodeia não nos evita essa preparação ansiosa, mas ajuda-nos a libertarmonos ou, pelo menos, a atenuarmos a sensação de angústia. Como actuar, então, racionalmente, perante a angústia? Como se disse atrás, pela fuga, defesa ou ataque, consoante o que se mostrar mais adequado. Embora tenha dito que não iria entrar pelo âmbito da angústia neurótica, há uma pequena observação de Freud a propósito das fobias das crianças — forma de angústia neurótica — que me interessa particularmente para este tríptico. Para ele, as primeiras fobias ‘de situação’ experimentadas pelas crianças são as relacionadas com a escuridão e solidão, na medida em que elas sentem com intensidade

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a ausência da mãe, explicação que não me interessa de modo algum discutir. A minha atenção deliberadamente lateral sobre este assunto pretende apenas expor aqui o curioso e comovente diálogo que Freud apresenta a certa altura (eventualmente, entre uma filho/a seu/sua — ‘ein Kind’ — e a cunhada) (Freud 1989: 393)3.: Ouvi uma criança, angustiada por se encontrar na escuridão, falar assim com a tia, que se encontrava num quarto próximo do seu: ‘Tia, fala comigo, tenho medo’. ‘Mas de que serve que fale contigo se não me vês?’. ‘Há mais luz quando alguém fala’ [‘Wenn jemand spricht, wird es heller’], responde a criança.

A altas horas da madrugada, quando a pessoa que está mortalmente doente, mas lúcida pensa no tipo de dias que ainda terá de percorrer até ao seu final, a ausência de uma voz médica solidária que lhe tenha dado garantias efectivas de não-abandono pesará imenso. Tanto que, mesmo com todas as luzes do quarto acesas, uma escuridão terrível a poderá rodear. Sintomaticamente, uma doente de Quill, Mrs. J., sentia muitas mais dores quando estava sozinha (Quill 1993: 89). Penso poder-se assim verificar que são óbvias as relações entre este painel e o tema do tríptico anunciado, relações que irão ainda ser explicitadas no painel seguinte. Mas sublinharia, desde já, que, segundo Timothy Quill — a que poderemos acrescentar a nossa própria experiência — o pessoal médico e os/as bio-eticistas tendem a ser ‘abstractos e intelectuais, minimizando a angústia com que muitos pacientes e as suas famílias são confrontados’ (ibid.: 21). Ora, é precisamente a tendência a passar ao lado desta angústia, desta angústia real de quem está a defrontar-se com um perigo iminente de morte, que cria uma sensação de desamparo e abandono em tantas pessoas, podendo explicar, segundo o mesmo Timothy Quill, que o famoso manual de auto-ajuda no suicídio, Final Exit, de Derek Humphry, pudesse ter estado nos tops dos livros mais vendidos nos Estados Unidos durante grande parte do ano de 1991, de acordo com a respectiva secção de The New York Times (ibid.: 125-9). Há, de facto, alturas em que, quando ninguém fala, faz mesmo muito escuro, como sabia a criança de Freud. Se a angústia provocada por essa falta de luz ainda não for tão excessiva que paralise completamente a acção, a tendência será a de recorrer a qualquer meio que a faça diminuir. À falta de melhor, e no caso de morte difícil, um manual de auto-ajuda no suicídio, mesmo sem a garantia de que o receituário proposto seja eficaz.

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Mesmo assim, para muitos/as sempre será melhor do que a escuridão completa que nos condena ao abandono.

PAINEL DA DIREITA: ‘QUEBRAR A ANGÚSTIA’ Timothy Quill conhece bem a sensação de desamparo e angústia que pode experimentar quem está para morrer ou quem foi diagnosticado com uma doença mortal. Por isso, em dois livros distintos, distanciados no tempo, usa mesmo uma linguagem muito semelhante para descrever a situação. Assim, em 1996, escreve: ‘A horas tardias da noite, no escuro, quando estão completamente sozinhas, muitas pessoas doentes que estão para morrer imaginam o pior cenário para elas’ (Quill 1996: 206). Cinco anos mais tarde, expressa-se deste modo (Quill 2001: 66): Algumas vezes, especialmente a horas tardias da noite, quando as distracções habituais desaparecem, esta viagem imaginativa levará o/a paciente às mortes que ele ou ela conheceu ou viu. Se a pessoa testemunhou uma morte difícil, ou uma morte em que os/as médicos/as não reagiram adequadamente, a experiência pode ser assustadora. [...] sem o conhecimento de que será possível encontrar uma saída para as circunstâncias mais duras, os dias finais de uma pessoa podem ser dominados pelo medo em vez da esperança.

Estas noites de que Quill fala são, subentende-se, tanto mais difíceis quanto, de dia, nenhum/a médico/a inspirou ao/à doente o mínimo de confiança quanto ao futuro, discutindo os seus medos, abrindo-lhe possibilidades e assegurando-lhe que não o/a abandonaria. Até ao nível religioso, qualquer que seja a religião, Quill estranha a ausência de acompanhamento espiritual, mesmo sabendo-se que muitos/ as cidadãos/ãs americanos/as acreditam numa entidade superior (ibid.: 101). No entanto, são notáveis os exemplos que dá em A Midwife Through the Dying Process do que pode ser feito a este nível, quer no caso de Chynthia, acompanhada até ao final por membros da comunidade budista, que se deslocavam a sua casa, várias vezes, na semana para tempos de meditação (Quill 1996: 20), quer no caso de Robb, homem jovem com Sida. Neste caso, tendo Robb descoberto a sua afinidade com as tradições americanas nativas, foram estas que o acompanharam na sua despedida desta vida (ibid.: 46-47):

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A confusão, acotovelamento e monitorização que geralmente caracterizam a morte na América do século vinte foram substituídos por cânticos, tambores e orações. Por um breve momento, o andar do hospital foi transportado a um tempo, a um lugar e a uma cultura em que a morte era aceite e, por vezes, mesmo bem-vinda

Mas estes exemplos de acompanhamento médico e espiritual não são frequentes. Depois de ter publicado o artigo sobre Diane e de a polémica se ter acendido, Quill recebeu mais de duzentas ‘cartas notáveis’ (Quill 1993: 22) de pessoas que queriam partilhar com ele a angústia e tragédia que tinham vivenciado de perto com a morte difícil de familiares e amigos/as, a quem o pessoal de saúde tinha abandonado. Por outro lado, os/as seus/suas clientes, em vez de terem ficado assustados/as com a sua participação na morte de Diane, davam-lhe mostras de maior confiança, contando-lhe também histórias que, até então, tinham mantido em segredo, por medo de repercussões legais ou mesmo por vergonha e remorsos. Nestes dois últimos casos, podia ser que se tivessem negado a anuir a um pedido lúcido e reiterado de ajuda para morrer, por parte de um/a familiar a quem o pessoal médico abandonara ou fora incapaz de proporcionar uma morte sem grande tormento, pelo menos fisicamente (cf. Quill 1996: 159). Daí a vergonha e os remorsos. A partir destas experiências, Quill adquire uma convicção: ‘No fim da vida, o sentimento de indignidade já tocou tantas pessoas, e as histórias são tantas e tão graves, que agora acredito que o problema é muito mais profundo e comum do que pensava a princípio’ (Quill 1993: 22). Não por acaso, também só depois de ter publicado o artigo é que, na sua própria família, lhe dizem em que circunstâncias morrera o avô paterno. O seu próprio pai continua a recusar tocar nessa parte da história familiar, embora seja veemente ao transmitir a ideia de que não quer ter um processo de morte com sofrimento prolongado. O facto é que o avô morrera de repente, com o coração despedaçado, segundo se dizia, três dias antes da própria filha morrer, de um cancro da garganta com avanço lento, mas inexorável. Sabendo-se que, mesmo hoje, este tipo de mortes pode ser ‘angustiante’ (ibid.: 38. Embora o livro seja de 1993, literatura mais recente continua a falar desta angústia), Quill pensa que o avô simplesmente não deve ter aguentado o desespero de ver a filha em tal sofrimento lento, sem nada poder fazer. Por isso, escreve: ‘Para mim, é notável como muitas famílias têm histórias não ditas, secretas, por vezes envergonhadas, acerca do seu desamparo face a um sofrimento extremo no fim

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da vida de um ente querido’ (ibid.: 38). Há, portanto, algo que as famílias já sabem, mas que a classe médica se recusa, em grande parte, a reconhecer: que pode haver mortes com grande sofrimento, mesmo em face dos melhores cuidados paliativos (por ex., ibid.: 208, e a ‘Conclusion’ de Quill and Battin, 2004). As testemunhas que presenciaram esse sofrimento sabem algo terrível: sabem ‘que regras simples, restrições e princípios abstractos não as protegem dos efeitos atrozes que a doença incurável tem por vezes nos/as doentes e suas famílias e amigos/as’ (Quill 1993: 22). Por outro lado, as proibições existentes quanto à eutanásia e suicídio assistido reforçam este estado de coisas: quando a/o doente expressa um desejo de morte, o/a médico/a desvia a conversa, repreende-a/o por falar desse modo ou faz com que seja encaminhado para a área da psiquiatria, até que perca aquela ‘mania’ de pedir a morte. Muitas vezes, o pedido podia deixar de existir, se um/a médico/a soubesse, verdadeiramente, comunicar com o/a doente sobre as suas angústias, frequentemente ‘mais emocionais e existenciais do que simplesmente físicas (ibid.: 104), mostrando-lhe o seu empenhamento em não-abandoná-lo/a ao sofrimento, qualquer que fosse a situação com que se viessem a defrontar. Mas essas capacidades comunicativas escasseiam no pessoal médico, também quando se trata de comunicar maus resultados quanto à saúde, resultados que podem alterar gravemente a vida de uma pessoa ou revelarem mesmo uma morte a curto prazo (Quill, por ex. 1993: 99-101). E, como não há quem fale verdadeiramente com os/as doentes, tudo se lhes torna ainda mais escuro, ao contrário do que acontecia com a criança de Freud. Como dizia uma das doentes que Quill ajudou a morrer, Chynthia, de 37 anos, primeiro caso exposto em A Midwife Through the Dying Process, o que ela sentiu, antes de entrar em contacto com Quill e o cirurgião, é que outros médicos que conhecera, ultimamente, por causa da doença, ‘prescrever-me-iam medicamentos contra a dor, mas ninguém estaria disposto a ter uma relação comigo — e a dar-me à luz através do processo de morrer [midwife me through the dying process], se se desembocasse de facto aí’ (Quill 1996: 15). É este compromisso de ajuda e não-abandono que as/os doentes necessitam dos seus/suas médicos/as, sobretudo se estão para morrer. Poderem contar com este tipo de compromisso é equivalente a conseguirem ter alguma forma de controlo sobre o seu processo de morrer, poderem ter ainda a hipótese de actuarem sobre esse processo. Não nos disse Freud que o melhor meio de controlar a angústia é a acção? Debilitadas/os mas conscientes, estas/estes doentes não

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são – não têm forçosamente que ser – uns maníacos do controlo, como por vezes são apresentados (por ex., Peck 2002: 302-303; Hendin 1998: 36; Folley e Hendin 2002: 36). Afinal, o que querem controlar é a angústia real que os rodeia, seja por medo da dor e do sofrimento, da possível demência, das possíveis alucinações, ou, muito radicalmente, por causa da sua gradual desintegração como pessoas (ao longo dos seus livros, Quill utiliza muito este termo, ‘desintegration’). Como diria Freud, para eliminarem esta angústia de forma racional, precisam de saber qual o melhor meio de lhe fazer frente, de agirem sobre ela: pela fuga, pela defesa, pelo ataque? Nesse processo, apreciarão, com certeza, a ajuda preciosa de alguém que os/as guie e aconselhe (Quill 2001: 139), desde que tenha a imaginação empática suficiente para se colocar na própria pele de quem está doente, ou, na expressão inglesa, ‘to walk in another’s shoes’ (ibid: 23). O que fez Diane nessa tentativa de controlo? Poder-se-ia, decerto, apreciar o seu caso de diversos modos, mas talvez não seja incorrecto dizer-se que cada um dos seus procedimentos correspondeu a uma fuga, a uma defesa e a um ataque, podendo a sua própria morte voluntária ser considerada a concretização de cada uma dessas estratégias, perante os perigos que ameaçavam a sua ‘pessoalidade’ (‘personhood’). Por isso se insiste em que o suicídio assistido pode ser visto, não como o resultado de um estado deprimido, mas como um acto que deriva de uma ‘necessidade de auto-preservação, para evitar ser-se destruído fisicamente e privado existencialmente de sentido pela doença e morte iminente’ (Battin 2001: 2). Freud já dissera – e ele próprio representa um caso de eutanásia, como se sabe – que a forma mais racional de deter o desenvolvimento da angústia real é a acção que desenvolvemos para escapar ao perigo, obedecendo, precisamente, à pulsão de auto-conservação. É para nos preservarmos, para sobrevivermos, que temos necessidade de agir. Aliás, elaborando mais o seu pensamento, o que Freud nos diz, na mesma conferência, é que a angústia tende a ser paralisante e, por isso, menos transformável em acção. Pelo contrário, restringindo-se a angústia, o estado de preparação ansiosa pode ser mais facilmente transformado em acção. No caso de uma doença que ameaça a integridade física, psíquica e ‘existencial’ de uma pessoa (sobre a natureza do sofrimento, ver o notável livro de Cassell 2004), podemos também considerar que o perigo que ameaça a sua integridade é como se lhe fosse exterior, mesmo provindo do fundo das suas entranhas. Por isso é que a ameaça à integridade da pessoa pode ser de tal ordem que, para ela, a

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acção mais racional seja recorrer à morte voluntária. Nestes casos, em que a morte difícil não se deve a incompetência médica (Quill 2001:147-8), seria preciso encontrar um termo diferente de ‘suicídio’ para caracterizar o pedido que estas pessoas fazem. Como diz Quill, o termo está associado à ‘destruição do eu’ (Quill 1996: 88), mas o que se pretende é precisamente impedir a sua desintegração lenta e dolorosa, permitindo-lhe ainda alguma forma de acção (ibid.: 88-89). As pessoas de que aqui se trata não têm escolha entre a vida e a morte, como acontece nos outros casos de suicídio. Só podem escolher entre uma morte dita ‘natural’, cada vez mais rara numa época de medicalização da morte nos países mais avançados (Heide et al. 2003), ou um processo de morte que se vá programando, de acordo com as necessidades da pessoa. Significativamente, os vários casos descritos, na literatura, sobre o assunto apontam para uma muito maior quebra da angústia e medo, quando as/os doentes em fase terminal sabem ter ao seu dispor uma via relativamente segura de fuga, se a sua situação piorar de uma forma que, então, poderão experimentar como intolerável (por ex, Lee 2003). Assim, segundo Quill, ‘Para Diane, acabar, deste modo, com a sua vida seria um acto de auto-preservação e não de auto-destruição’ (Quill 2001: 54). Obviamente, essa segurança, real ou fictícia, também pode ser dada por hospices que não admitam o suicídio assistido. Mas o importante a ressaltar é que, nestes casos, foi também a própria pessoa a considerar que essa suposta segurança lhe bastava para aliviar o medo e a angústia (Freud tende a desprender a angústia da sua relação com um objecto, ao contrário do medo e da preparação ansiosa). Nessa consideração consistiu o seu acto de reacção à doença, por achar, eventualmente, que essa era a solução que mais se adequava aos seus valores. Mesmo que depois a sua atitude pareça ‘passiva’, esperando a morte de um modo mais ou menos confiado (é para esta situação que apontam os livros de Marie de Hennezel sobre os cuidados paliativos), esse seu acto inicial deve ser sublinhado. Isto pressupõe, no entanto, que as máximas escolhas possíveis sejam dadas a quem está para morrer, num processo de não-abandono empático que se dispõe a procurar o que será melhor para o outro, no respeito das suas convicções mais pessoais e maduras (a este respeito, ver o cap. 10, ‘Partnership and Nonabandonment’, in Quill1996). Em comparação com os riscos de legalizar ou despenalizar o suicídio medicamente assistido, Quill é bem claro: ‘Os riscos e as consequências opressivas derivados da manutenção das proibições existentes foram menos claramente articulados na literatura sobre o as-

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sunto’ (Quill 1993: 166). Quanto ao maior risco, consiste precisamente no abandono dos casos mais difíceis de morte: ‘Ninguém devia ser obrigado a morrer sozinho/a, ou a morrer com um saco plástico sobre a cabeça, apenas porque temos receio de encarar integralmente as implicações práticas do que permitimos’ (Quill 1996: 176).

PAINEL POSTERIOR ESQUERDO: ‘PORQUE ME ABANDONASTE?’ Como já foi mencionado, o tríptico que tento expor aqui também tem os dois painéis laterais posteriores pintados, apresentando-se, assim, imediatamente como obra pictórica mesmo quando fechado. Embora com menos conteúdo do que os anteriores, o significado desse conteúdo não é menos importante, possibilitando alargar a discussão, aqui apenas iniciada de forma telegráfica, por falta de espaço. O painel de que agora falo tem apenas nele inscrito dois símbolos: uma cruz, símbolo do cristianismo, e uma balança, símbolo da justiça. Como se sabe, embora o cristianismo não possa ser confundido apenas com a Igreja Católica, sabe-se que esta é a instituição que mais se opõe à legalização ou despenalização da eutanásia e/ou suicídio medicamente assistido, sobretudo em nome do reconhecimento de que Deus é o único senhor da vida e da morte, não o ser humano, e de que o sofrimento (ou algum dele) pode ter um valor redentor. A este propósito, quatro notas muito breves. 1. A eutanásia e o suicídio assistido não correspondem a um assassinato, mas a uma ajuda no morrer, que é pedida, e que pode e deverá expressar um acto de solidariedade, em relação àqueles/as para quem viver já só significa uma tortura. 2. O apoio à manutenção da proibição da eutanásia e suicídio assistido não pode significar o abandono de quem está a vivenciar um processo de morte cada vez mais difícil. Por isso, quem se opõe a estes métodos deverá incentivar a procura criativa de modos que ajudem a minimizar a tortura final do/a doente. 3. A perspectiva da Igreja Católica sobre estas questões poderá estar demasiado influenciada por uma leitura sacrificial do cristianismo, leitura que, noutros âmbitos, foi denunciada por um autor como René Girard (por ex., Girard 1978 e Santos 1997). 4. Há pessoas muito conhecidas e ligadas ao catolicismo que contestam estas proibições. Entre elas, o teólogo Hans Küng (1995).

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De qualquer modo, embora seja importante ter em conta a posição da Igreja Católica, o catolicismo não é já a religião oficial dos estados, que têm de legislar, sem discriminação, para crentes e não crentes. Por isso, ao inserir a balança da justiça neste painel, pretendo chamar a atenção para o exercício laico da lei, propósito que, a meu ver, foi notavelmente expresso pelo United States Court of Appeals for the Ninth Circuit em 1995, num caso que visava pôr em causa a proibição ao suicídio medicamente assistido no estado de Washington. Sem comentários, deixo aqui registada a parte final da sentença maioritária (Compassion in Dying v. State of Washington, p. 38 do texto retirado da Internet). De acordo com o nosso sistema constitucional, nem o estado nem a maior parte das pessoas de um estado pode impor a sua vontade ao indivíduo num assunto tão acentuadamente ‘central para a dignidade e a autonomia pessoal’ [...]. Aqueles/as que acreditam, fortemente, que a morte deve sobrevir sem assistência médica são livres de seguir essa convicção, quer se trate de médicos/as ou doentes. No entanto, não são livres de impor as suas perspectivas, as suas convicções religiosas ou as suas filosofias a todos os outros membros de uma sociedade democrática, e compelir aqueles/as cujos valores diferem dos seus a morrerem de um modo doloroso, prostrado e cheio de ansiedade.

PAINEL POSTERIOR DIREITO: ‘IN MEMORIAM’ No início do capítulo 3 de Death and Dignity, Timothy Quill serve-se de uma parábola muita usada nos meios médicos para que possamos cair na conta de quanta tortura os profissionais de saúde podem infligir às pessoas que estão para morrer. Nessa parábola, ‘Três marinheiros naufragam numa ilha longínqua e são capturados por uma tribo primitiva’. Julgados pelos mais velhos, ao primeiro marinheiro é dada a hipótese de escolher entre a morte ou um enigmático ‘ChiChi’. Procurando escapar à morte, o marinheiro escolhe a última hipótese, mas o que recebe é tortura lenta seguida de morte. Perante a mesma possibilidade de escolha, o segundo marinheiro, que observara o que acontecera ao colega, embora não querendo ser torturado, responde também ‘Chi-Chi’, na convicção de que talvez esse processo pudesse mudar e não conduzir à morte. No entanto, é submetido

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ao mesmo ‘tratamento’ doloroso anterior. Finalmente, o último marinheiro, sem qualquer esperança sobre as suas hipóteses de sobrevivência, escolhe directamente a morte. Ao menos, pensava, pouparse-ia à tortura. Os mais velhos parecem ter uma reacção de surpresa perante a resposta, mas decidem rapidamente: ‘Okay, mas primeiro Chi-Chi’ Quill serve-se desta parábola para salientar quanto o tratamento agressivo de doentes terminais pode constituir para eles/elas uma tortura, ainda por cima quando o que mais desejam é que os/as deixem morrer em paz. Ao nível de países tecnologicamente muito desenvolvidos como os Estados Unidos, e para quem dispõe aí de um bom seguro de saúde (aproximadamente 43 milhões estarão nesse país excluídos dele, segundo Quill 2001: 208), compreende-se esta situação. E compreendendo-a, compreende-se também que o mesmo Quill afirme que as nossas sociedades transformaram as unidades de cuidados intensivos em capelas de uma nova religião e os actos de reanimação cárdio-respiratória no seu cerimonial final (Quill 1993: 49), não havendo lugar para um bom acolhimento da morte. Mas esta parábola, como Quill bem sabe, fala apenas de um dos excessos em que somos pródigos. Do outro lado deste extremo está outra forma de abandono, aquela em que as pessoas morrem sozinhas e em dificuldade, como acaba de nos revelar um inquérito francês feito a 200 hospitais (Favereau 2005), abandono a que Norbert Elias já se referiu há muitos anos atrás quando escreveu sobre a solidão dos que morrem (Elias 1987). Por isso, este último painel existe em memória de todo o sofrimento a que muitas pessoas em processo de morrer foram submetidas, aí incluindo o sofrimento de quem as acompanhou, pois também elas morreram um pouco com a incapacidade de aliviar quem estava para partir. Trata-se de um painel pesado, tanto mais quanto esta memória a que se refere é ainda a de pessoas de hoje e de amanhã e não apenas do passado. Sabemos o desafio que representa: Voltar as costas aos/às poucos/as, cujas necessidades não encaixam perfeitamente no nosso enquadramento ético corrente enfraquece os cuidados excelentes que fornecemos à maioria que é suficientemente afortunada para completar as suas histórias de vida com a sua pessoalidade [personhood] intacta (Quill 1996: 172).

Um dia, talvez as nossas sociedades possam, definitivamente, atirar este último painel para o domínio do passado, não deixando que mais nenhuma Diane seja obrigada a pedir ao marido e filho para

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saírem de casa a fim de morrer sozinha. Um dia, talvez as nossas sociedades possam, definitivamente, compreender o que a criança de Freud aprendera por si própria: que há mais luz quando alguém fala. Até lá, fixemos o nosso olhar neste ‘In Memoriam’ e façamos tudo o que estiver ao nosso alcance para que esta memória e memorial se transformem radicalmente e a breve trecho.

NOTAS 1 As traduções existentes no texto, exigência desta Revista, são todas da minha responsabilidade. 2 Expressão que, atendendo à medicalização cada vez mais acentuada do morrer, já não contempla muitas vezes apenas a eutanásia e/ ou o suicídio assistido, mas também outras formas de ajuda a terminar com a existência, como decisões de não iniciar ou cessar o tratamento, que, directa ou indirectamente, apressarão a morte, ou o alívio da dor ou outros sintomas através de uma medicação muito forte, recorrendo-se por exemplo à sedação terminal ou permanecendo-se nos limiares por vezes ambíguos da utilização de medicamentos de ‘duplo-efeito’. 3 Trata-se de um exemplo que, basicamente, já aparecera numa nota a Três ensaios para uma teoria da sexualidade, em 1905 (cf. Freud, 1989, vol. V, 128: nota 1).

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End-of-Life and Non-Abandonment: A Triptych After Timothy E. Quill

Sumário

Summary

Ao nível formal, este artigo retira inspiração dos trípticos da arte sacra ocidental, sendo o próprio artigo constituído por um tríptico (escrito), integrando cinco painéis pintados (os painéis laterais posteriores também se encontram pintados). É sob esta forma que, a partir de alguns livros do prestigiado médico e professor norte-americano Timothy Quill, mas também a partir de Freud e outras fontes, se reflecte sobre o fim de vida e a necessidade de haver um compromisso estreito de não-abandono, da parte de quem cuida, em relação àquela/e que é objecto de cuidado, cuidado médico ou outro. O texto evidencia que honrar este compromisso de não-abandono, sobretudo de quem está num processo difícil de morte, implica a legalização ou despenalização do suicídio assistido. Além do mais, na linha de Quill, é defendido que a possibilidade legal do suicídio medicamente assistido, mediante o estabelecimento de rigorosas salvaguardas, pode contribuir, em muito, para a redução da angústia gerada pela expectativa de uma morte difícil. Como lado sombra das actuais proibições, salienta-se o risco de abandono em que se podem vir a encontrar as/os doentes em processos de morte mais difíceis.

In terms of structure, the text presented here is inspired by the western sacred art triptychs, being made up of a (written) triptych, integrating five painted panels (the two lateral back panels are also painted). It is according to this structure that, based on some books by the prestigious North-American doctor and Professor Timothy Quill, but also based on Freud and other sources, the article reflects upon end-of-life and the need for a close commitment in terms of non-abandonment between those who take care of and those who are being taken care of, subject to medical care and other kinds of care. The text will illustrate that honoring this commitment of non-abandonment implies that the clinician promises to work in partnership with the patient and family through their uncertain future no matter where it goes. Based on Quill’s work, it will argue that through the establishment of strict safeguards the legal possibility of physicianassisted suicide may contribute to decreasing the anguish brought about by the prospect of a difficult death. Most patients will not need this assistance, but many are glad to know that it could be there. One must stress that the downside of the current prohibitions is the risk of abandonment which the patients undergoing a harder dying process might face.

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